REPONTE
A pata de cavalo, a dente de
cachorro e a gritos vou repontando esta minha sina de escrever sobre o Sul de
nós mesmos. Tirando a literatura do mato como se fosse novilha gaviona. Assim
me vou, de rédea curta, com o chapéu tapeado, ouvindo o tilintar das chilenas e
tenteando a barbela do freio. Não me importo com a cor do pelo nem com o
tamanho da aspa do torena. Para quem vive enforquilhado, uma rodada é coisa
pouca. Por isso parceiro, tem a hora da gritaria, da balbúrdia, da cachorrada,
mas existe também o momento de se assobiar miúdo, fazer "bichinho"
com a boca para não assustar as palavras, como se faz com redomão recém domado.
Cuido daquilo que gosto e escrevo todos os dias pensando nessa gente humilde
que ainda vive à beira dos corredores sem fim da campanha, nos fundões de
campo, nos casebres simplórios de chão batido. Desculpem-me os homens de fama,
poder e recursos, porque também entre
eles existem os retos e generosos, mas me criei entre os deserdados, os
feridos, os estropiados, os esculachados, os
miseráveis que perambulam dia e noite pelos confins do medo e da
desesperança.
Quando passo pela porta dessas
lanchonetes aqui na capital e enxergo as garrafas empilhadas nas prateleiras de
vidro, logo me vem à cabeça meu velho bolicho beira de estrada. O balcão
riscado de faca, o cheiro do fumo em rama, a balança bico-de-pato, as latas de
sardinha, as tuias cheias até a boca de arroz e feijão, as sacas de farinha de
trigo, os biscoitões, o sorvete seco, os tijolinhos, as garrafas de cachaça
lado a lado (que iam sendo consumidas lentamente, dia a dia), os bancos, os
cepos e as cadeirass de palha com os assentos barbudos. Pela porta escancarada,
tínhamos pena dos cuscos assoleados, língua de fora, debaixo dos ciprestes, e
víamos, ao longe, as tropas, as carretas, os tratores, os gaúchos a pé e de
bicicleta, uns bem montados, outros só com freio e pelego na mão. Ah, meus
amigos, foi naquele tosco confessionário campeiro que ouvi as mazelas do povo
sofrido, dos tropeiros, dos changueiros, dos alambradores, dos esquiladores,
dos domadores, dos motoristas, dos lavradores e até dos curandeiros, dos
carpeteiros e dos carreiristas de cancha reta.
Daqui onde estou, vejo uma
montanha em que a cidade avançou e uma nesga de mato, uma pequena estradinha que
lembra um antigo corredor da infância, de terra vermelha e batida. Volto no
tempo e sou guri, outra vez, montado no Tostado, só com um pelego apertado pelo
cinchão. Os aramados dos dois lados, gado charolês numa invernada, uma tropilha
de Crioulos na outra. Firmo a vista e estou, outra vez, repontando um lote de vacas leiteiras para saltarem no
banheiro dos Abreu. Olha lá, a Zebua, vaca boa de leite, a Pretinha, a Picaça,
a Bezinha e até o terneirinho jaguané que
morreu quebrado numa toca de tatu. O passado e o presente se confundem
na minha mente saudosa e inventiva.
Meus amigos, reponto um tropa de
perguntas que ficam sem respostas, por serem teatinas. Eu crio e recrio e
também sou imaginário do pago. E me vou, repontando a vida, revendo saudades e
adivinhando por quem ainda bate o coração da gauchada.
Compilado da coluna Campereada de
Paulo Mendes, no Correio do Povo de 20/11/2016.